Há QUEM NãO GOSTE DO CAPITãO DA ALEMANHA. MOTIVO: AS RAíZES TURCAS QUE ILKAY GüNDOğAN REJEITA ESQUECER

O médio do Barcelona é o primeiro jogador descendente de imigrantes a usar a braçadeira da seleção da Alemanha numa grande competição. A mesma sondagem em que 21% dos inquiridos disse desejar que a Mannschaft tivesse mais jogadores brancos na equipa divulgou também que 17% dos participantes no inquérito preferiam não ter um capitão de origem turca. “Podemos parecer diferentes, mas também somos alemães”, defende-se o jogador, que volta a liderar a seleção este sábado (20h, TVI), contra a Dinamarca, nos oitavos de final do Europeu

Irfan e Ayten moravam na Alemanha quando Ilkay nasceu. O casal de origem turca acreditava que seria útil para os dois filhos crescerem a dominar duas línguas. Era uma maneira prática que os mais novos membros da família tinham para se integrarem na comunidade onde viviam, em Gelsenkirchen, e, ao mesmo tempo, manterem alguma ligação com a cultura dos pais.

Os irmãos, Ilkay e Ilker, tornaram-se poliglotas, mas, entre eles, tinham o alemão como forma de expressão preferencial. Numas férias na Turquia, os pais levaram-nos a uma loja de camisolas de futebol. Ali, não havia valores nas etiquetas. A astúcia financeira dos comerciantes ditava que os preços fossem mais caros para os turistas do que para os habitantes locais. Durante o regatear do montante a ceder, por lapso, Ilkay dirigiu-se a Ilker em alemão. Imediatamente, as camisolas passaram a custar o dobro.

Assim como os Gündoğan, outras famílias se imiscuíram na comunidade de Gelsenkirchen. Nas ruas, os campos improvisados eram retalhos de nacionalidades. As equipas para os jogos de futebol eram compostas por turcos, árabes e asiáticos.

Entre eles estava o futuro capitão do país que os uniu.

İlkay Gündoğan tornou-se no primeiro descendente de imigrantes a ser capitão da seleção da Alemanha numa grande competição. Os episódios da infância aqui recuperados foram contados pela Der Spiegel. A conversa com a publicação germânica serviu de resposta à sondagem do canal WDR: 17% dos inquiridos são contra a decisão de ser um jogador de origem turca a usar a braçadeira. “Podemos parecer diferentes, mas também somos alemães”, arguiu İlkay Gündoğan.

Também já respondeu no relvado, onde esteve nos três jogos da Alemanha na fase de grupos, tendo sido eleito o melhor em campo na vitória frente à Hungria.

A mesma sondagem também concluiu que 21% dos inquiridos gostava que a seleção fosse composta por mais jogadores brancos. Julian Nagelsmann, selecionador alemão, considerou a pesquisa “racista” e considerou uma “loucura” que um canal público se tivesse empenhado naquela investigação. O WDR disse-se “consternado” com os resultados e considera-os demonstrativos da “situação social do país”. Nas últimas eleições europeias, o AfD, partido de extrema-direita defensor da deportação massiva de imigrantes, foi o segundo mais votado na Alemanha.

Estima-se que vivam no país três milhões de cidadãos nascidos na Turquia ou descendentes de turcos. Em 1961, deu-se o grande impulso para que tal acontecesse. O acordo de contratação de gastarbeiter (trabalhadores convidados) para ajudarem a dinamizar a atividade económica no pós-Segunda Guerra Mundial levou milhares de turcos até à Alemanha. Inicialmente, os trabalhadores tinham permissão para permanecerem por tempo limitado e sem direito a trazerem a família. A restrição desapareceu três anos mais tarde, o que levou à fixação de um vasto número de pessoas no território.

İlkay Gündoğan tem dupla nacionalidade. É muçulmano, mas em criança participava nas celebrações de Natal organizadas pela escola de dança que frequentava. Os seus ídolos eram os irmãos Hamit e Halil Altıntop, germano-turcos com passagem no Schalke 04. Quando rumou a Dortmund, em 2011, foi substituir Nuri Şahin, outro jogador com dois passaportes e recém-contratado como treinador do clube. Na seleção alemã presente no Euro 2024 também Deniz Undav e Emre Can têm nacionalidade turca.

Existe ainda o fenómeno contrário: Hakan Çalhanoglu, Salih Ozcan, Cenk Tosun, Kenan Yildiz e Kaan Ayhan nasceram na Alemanha, mas representam a Turquia neste Europeu.

A mudança para Dortmund trouxe a İlkay Gündoğan um reconhecimento como jogador que não era acompanhado pelo respeito que a sociedade demonstrava pela pessoa. Enquanto procurava casa para viver durante o período no novo clube, perguntavam-lhe se, por ser turco, tinha a certeza que a conseguia pagar. Outras pessoas elogiavam o quão fluente era o alemão de alguém que, até ali, sempre tinha vivido na Alemanha.

Esteve cinco anos no Borussia Dortmund, sete no Manchester City e um no Barcelona. Atingiu a casa das 80 internacionalizações e o Euro 2024 que a Alemanha disputa em casa é a quinta grande competição em que marca presença. Mesmo assim, ainda se sente discriminado, como comentou com a Der Spiegel. “Houve momentos em que entendi que as críticas ao meu jogo significavam que certas pessoas simplesmente não me queriam lá. Isso doeu particularmente.” Não foi o primeiro a queixar-se do mesmo. Mesut Özil afirmou o mesmo quando abdicou de jogar pela Alemanha após o Mundial 2018. “Sou alemão quando ganhamos e imigrante quando perdemos”, reclamou o antigo jogador do Real Madrid e do Arsenal.

Porque a diplomacia se faz em vários campos, Gündoğan e Özil tornaram a questão da identidade mista um tema de debate nacional. Recep Tayyip Erdogan visitou o Reino Unido em 2018. Nas fendas da agenda, o presidente da Turquia encontrou-se com os internacionais alemães. Os jogadores regalaram o chefe Estado com souvenirs. A oferenda de camisolas do Arsenal e do Manchester City ficou registada em fotografias com confrontos intencionais das lentes das câmaras.

Uma catadupa de significados foram colados ao encontro. Aquele foi visto como um ponto de contacto entre os dois países que vivem momentos tensos de uma relação com mais de um século. Desde que Erdogan endureceu a postura política, os laços da Alemanha com a Turquia têm-se degradado, daí que o convívio entre o líder turco e os jogadores tenha sido visto como problemático.

Gündoğan sempre viveu bem com o coração dividido. Nenhuma das partes prevalece sobre a outra. “Só porque jogo pela Alemanha, isso não faz de mim menos turco”, escreveu no The Players' Tribune. “Pertenço aos dois países, mas, às vezes, parece que estou preso entre eles. Dizem que não sou totalmente alemão. Dizem que não sou totalmente turco.

Então, sou o quê?”.

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