«A MINHA MãE DISSE-ME QUE JOGARIA NO NOSSO SPORTING»

Com a partida de Manuel Fernandes desaparece uma das grandes figuras da história do Sporting, alguém que fez tudo para jogar de leão ao peito, que desfrutou da possibilidade de treinar a equipa principal, que se deu ao clube como dirigente, scouter ou comentador, e que foi capaz de, por amor à camisola, recusar a mudança para a Luz naquela que seria, à altura, a maior transferência da história do futebol português. Haverá, seguramente, nestes dias cinzentos e tristes em que o sentimento de perda se sobrepõe a todos os outros, gente muito habilitada para falar das várias facetas do Manel de Sarilhos.

A proposta que aqui deixamos é, porém, outra: conhecer a vida de Manuel Fernandes contada, desde os tempos em que acompanhava o pai que trabalhava nas fragatas até à invasão de Alcochete, que testemunhou, pelo próprio protagonista. Numa extraordinária entrevista de vida concedida a A BOLA TV em setembro de 2019, Manuel Fernandes desfiou memórias e abriu o coração. E é ao lado de Fernando Peyroteo e Vítor Damas, depois de ter reencontrado Salif Keita, Manoel, Rui Jordão e Chico Faria, companheiros do ataque verde e branco — que o Manel de Sarilhos vai certamente gostar de recordar esta sua história, vai da trapeira à Bola de Prata, das alegrias às amarguras, das vitórias às injustiças, afinal retalhos da vida de quem escolheu o futebol como profissão e o Sporting como paixão…

— Como era Sarilhos Pequenos, na margem sul do Tejo, onde nasceu em 1951, nos seus tempos de infância?

— A nossa terra é sempre bonita. Sarilhos era uma aldeia onde os homens é que trabalhavam fora de casa e quase todos como fragateiros.

— E o que é que faziam?

— Os fragateiros tinham uma profissão espetacular no rio e no mar, embora no inverno fosse particularmente difícil. Transportavam mercadorias dos navios que fundeavam no Tejo para a terra. Lembro-me de quando tinha férias da escola primária, o meu pai levar-me com ele e não era para trabalhar e adorava partilhar o dia a dia daqueles homens. Também recordo que fazia sempre o mesmo pedido ao meu pai, que me trouxesse o jornal A_BOLA à segunda-feira para poder ver os resultados e quem tinha jogado.

— Teve uma infância difícil?

— Não, não tive uma má infância, ao contrário de muitos amigos desse tempo que passaram por dificuldades. Vivia numa rua de terra batida e a minha mãe, que ao contrário do meu pai gostava muito de futebol, organizava desafios à minha porta para eu poder jogar e melhorar.

— De que clube era a sua mãe?

— Do Sporting. E incentivou-me sempre a jogar. Aliás, a minha mãe disse-me que havia de jogar no Sarilhos, que era o clube da terra, depois iria para a CUF, que era o clube mais importante da zona, e que jogaria a seguir no nosso clube, o Sporting. Só não adivinhou que eu acabaria a carreira no Vitória de Setúbal.

— Sarilhos fica a 30 km de Lisboa. Nos anos 50 já havia eletricidade e água canalizada?

— Quando me conheci melhor como gente, com 5 ou 6 anos, já havia eletricidade. Quando nasci, as minhas irmãs contavam-me que ainda era tudo com candeeiros a petróleo e água canalizada também não havia. Lembro-me de que para ir a Lisboa demorávamos 3 horas. Apanhávamos a camioneta até ao Barreiro e depois o barco para Lisboa.

A memória de ver o Sporting pela primeira vez

— Lembra-se da primeira vez que foi a Lisboa?

— Perfeitamente. Fomos ao casamento da minha madrinha, devia ter 5 anos, e o meu pai levou-me a mim e às minhas duas irmãs e lembro-me de que nas ruas íngremes, junto à Assembleia da República, em São Bento, num dia em que tínhamos estreado sapatos, o meu pai tinha que nos apanhar porque escorregávamos na calçada. Éramos uns saloios que não estavam habituados a andar em Lisboa.

— E quando é que viu o primeiro jogo a sério de futebol?

— Na minha rua, na porta do lado, morava o Sr. Cipriano, que era maquinista da CP, e um belo dia disse-me assim: amanhã prepara-te que vais comigo, já pedi ao teu pai. Eu já era reguila e retorqui-lhe, mas vou consigo para onde? Eu não vou consigo para lado nenhum! Ele insistiu, vais comigo porque tenho uma surpresa. E no dia seguinte levou-me ao Seixal para ver o Sporting [26 de janeiro de 1964, Seixal,1-Sporting,3] no campo do Bravo. E, acredite, ainda hoje me lembro como é que o Figueiredo marcou um golo.

— Ernesto Figueiredo, o Altafini de Cernache! Chegou a falar com ele desse jogo?

— Claro que sim. Quando joguei no Sporting, o Figueiredo aparecia muito por lá. Desse jogo lembro-me do impacto de ter visto o Sporting num jogo de primeira divisão com o campo à cunha. No Seixal, curiosamente, jogava a defesa-direito o António José, que foi o meu primeiro treinador nos juvenis do Sarilhos, e o guarda-redes era o Vítor Manuel, que depois foi meu colega em na CUF. Nunca mais esqueci o golo do Figueiredo, e já lá vão quase 60 anos, nessa tarde. O Geo deu um chapéu, a bola bateu na barra e o Figueiredo, que nunca desistiu do lance, deu dois passos atrás e fez o golo de cabeça.

— Em que escolas estudou?

— Até à 4ª classe, na escola primária de Sarilhos. E depois fui para o Montijo, para o curso industrial. Até ser profissional de futebol estudei sempre. Já no Sporting, acabei o curso industrial estudando de noite. Quem me incentivou foi um professor do Montijo, benfiquista, chamado Francisco Santos, que me dizia que tinha de pensar no futuro.

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