FERDI KADIOGLU, A SURPRESA DA SURPRESA DO EUROPEU QUE PARECE TER O DOM DA UBIQUIDADE

Na Turquia há um lateral/extremo/médio que joga à direita, à esquerda ou pelo centro e que tanto dribla perto da própria área como se destaca defensivamente. Moldado por Vítor Pereira e Jorge Jesus, Ferdi, habituado a estar em vários sítios, terá um duelo especial no sábado (20h, Sport TV1), já que defrontará os Países Baixos, onde nasceu

O Áustria-Turquia ia no minuto 94. A vencer por 2-1, a equipa de Montella estava a instantes de chegar às oito melhores da Europa apenas pela segunda vez na história. O cansaço já reinava, os austríacos tentavam o empate e os turcos viviam encostados à sua baliza, defendendo aquela liderança como o mais precioso dos tesouros.

Até que a bola chegou aos pés de Ferdi Kadioglu. Depois de 51 jogos pelo Fenerbahçe em 2023/24 e de ter disputado todos os minutos de todos os encontros da Turquia no Europeu, seria normal que, mesmo no fim do tempo de compensação decretado por Artur Soares Dias, Kadioglu se desfizesse da bola, a lançasse para longe, desejando que o relógio avançasse mais um pouco. Mas o cansaço não vive em quem se habituou a estar em todo o lado ao mesmo tempo.

Ferdi lançou-se como um raio para a frente. Foi conduzindo a bola, progredindo com ela, fazendo jus ao estatuto de 12.º jogador do Europeu que, em média, avança mais metros com bola de cada vez que a tem na posse.

Correu, correu, correu. Contrariou o cansaço, a lógica, as leis da física, talvez até a ordem cósmica das coisas. Na sua aventura com a bola, soltou-a para Baris Yilmaz, dando ao companheiro uma hipótese de fazer o 3-1.

Ajudada pelas aventuras de Kadioglu, a Turquia segurou a vantagem. Aquele sprint prévio ao apito final foi quase uma carta de apresentação de Ferdi: um jogador audaz, corajoso, que transporta a bola consigo como se estivesse a ser chicoteado, que defende e ataca, que tem jogado a lateral-esquerdo mas é destro, que finta e interceta bolas. Que é parte turco e parte canadiano, mas nasceu nos Países Baixos.

Parece ter o dom da ubiquidade, estar em várias partes simultaneamente.

Onde jogas? Em todo o lado

Nesta seleção turca, Ferdi Kadioglu joga a lateral ou ala esquerdo. Mas, quando se estreou como sénior, no NEC Nijmegen neerlandês, era médio-ofensivo.

À Tribuna Expresso, İnanç Ergülen, jornalista turco do “Habertürk”, conta que foi Vítor Pereira o primeiro treinador que, no Fenerbahçe, começou a variar a posição do futebolista nascido em 1999. O português apostou em Kadioglu, que é destro, como ala pela esquerda numa defesa de três centrais, função que, segundo Ergülen, foi “cumprida com êxito” por Ferdi.

Depois da adaptação com Pereira, outro português ajudou Kadioglu a tornar-se num super polivante. “Com Jorge Jesus, o jogo dele ganhou outra dimensão, entrou noutro nível. Tornou-se num lateral ou ala que participava na saída de bola, que se metia por dentro, que passou a atuar, também, no meio-campo”, diz Ergülen.

Gradualmente, Ferdi foi-se tornando num dos melhores jogadores do Fenerbahçe, cada vez mais utilizado, dos 38 encontros na época de Vítor Pereira para os 48 desafios na temporada de Jorge Jesus, culminando nos 51 da última campanha. Em 2023/24, Ergülen diz que Kadioglu foi lateral-esquerdo, direito, médio-ala em ambos os corredores e também extremo.

Esteja onde estiver, Kadioglu parece sempre olhar para outros lados, aspirar a ir para outras zonas. Fá-lo, muito, através do drible e da condução de bola, não tendo receio em tirar adversários do caminho mesmo arrancando de zonas recuadas: é o futebolista do Euro 2024 com mais dribles com êxito no seu próprio meio-campo (seis), segundo os dados da empresa especializada Driblab.

Contra a Áustria, correu 12,2 quilómetros, estabelecendo um novo máximo nos jogos do Europeu. Quer estar em todo o lado, está em todo o lado. Mas até poderia não estar na seleção turca.

Canadá, Países Baixos, Turquia

Nos quartos de final na Alemanha (sábado, 20h, Sport TV1), a Turquia defrontará os Países Baixos. Será uma eliminatória muito especial para Ferdi, que nasceu em Arnhem, em território neerlandês, com ascendência turca, ainda que a sua mãe tivesse vindo ao mundo no Canadá.

Na verdade, a primeira camisola de um país que Ferdi vestiu foi a dos Países Baixos. E não poucas vezes. O lateral/médio/extremo foi 54 vezes internacional jovem neerlandês, atuando em todos os escalões entre os sub-16 e os sub-21.

Ao lado de Matthijs De Ligt ou Doyllen Malen, esteve em torneios como o Europeu sub-17 de 2016, quando perdeu nas meias-finais contra uma seleção portuguesa com Diogo Costa, Diogo Dalot ou Rafael Leão (2-0, marcaram Zé Gomes e Dalot). Foi, ainda, ao Europeu sub-19 de 2017, sendo igualmente eliminado nas meias-finais com Portugal (1-0, golo de Gedson Fernandes), e ao Euro sub-21 de 2021, quando caiu nas ‘meias’ frente à Alemanha.

No entanto, a transferência, em 2018, para o Fenerbahçe afastou-o do radar neerlandês. Foi convidado pela seleção do Canadá em 2020, mas optaria pela equipa turca, que já representou 19 vezes.

Escolher entre paixões não lhe é estranho, já que, enquanto adolescente, teve de optar entre o futebol e o ténis. Diz-se que tinha bom nível no jogo da bola amarela, chegando a disputar torneios jovens nos Países Baixos, mas preferiu a modalidade da bola que se chuta com os pés.

No clube, depois do crescimento com Vítor Pereira e Jorge Jesus, 2023/24 foi, diz-nos İnanç Ergülen, uma “temporada de consagração”. Fez quase 5.000 minutos de jogo entre o Fener e a seleção, “demonstrando uma incrível resistência, uma brutal capacidade para ser sempre regular no rendimento”, nota o jornalista.

Polivalente, o selecionador Vicenzo Montella parece reservar-lhe um lugar à esquerda, mas sem castrar a sua veia ofensiva e dribladora, a paixão por desequilibrar, por partir em condução em aventuras que desmontam estruturas defensivas.

Apesar da natureza atacante, Ferdi, com o seu dom da ubiquidade, também está pronto para ajudar a defender. É o sexto futebolista do Europeu com mais tackles por jogo (3,5) e o 10.º com mais interceções por desafio (1,8), sempre segundo os dados da Driblab. Um cacharolete de virtudes que o tornam a surpresa dentro da seleção surpresa na Alemanha, a revelação da equipa revelação, a mais improvável entre as oito ainda em prova.

Com contrato até 2026, especula-se com o interesse do Borussia Dortmund e do Arsenal na sua contratação. İnanç Ergülen acredita que essa saída do Fenerbahçe acontecerá, impedindo Kadioglu de juntar José Mourinho à lista de treinadores portugueses com os quais trabalhou.

Mas, para já, a tarefa de Ferdi está na Alemanha. O próximo adversários são os Países Baixos, um ponto nos muitos lugares aos quais Kadioglu está ligado, a terra onde nasceu contra o país que escolheu representar, depois de já ter optado seguir o futebol e não o ténis.

Entre tanta mobilidade e movimento, entre tanta finta a recuperação, entre defender e atacar, estar nas alas ou no meio, Kadioglu tentará estar nas meias-finais do Euro 2024. İnanç Ergülen, porta-voz da conhecida euforia turca, acredita em tudo: “Esta equipa merece mais. Estar entre as quatro melhores já nem nos espantaria”, atira, confiante.

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