O CARRASCO DE PORTUGAL NO EURO, 20 ANOS DEPOIS: «DESCULPEM, FIZ Só O MEU TRABALHO»

Nascido a 4 de julho. Pelo menos para o comum dos portugueses. Um país em lágrimas, talvez mesmo em desespero, e uma Grécia a levar o Europeu para a Acrópole. Um dia marcante e um herói imprevisto. 

Angelos Charisteas.

Há exatos 20 anos, numa tarde de desfeita na Luz, o avançado helénico é o executor do sonho de Portugal. O país mergulha numa melancolia típica, e recorrente, até ser capaz de ultrapassar o desgosto – Paris, 2016, o golo de Eder.

Ao minuto 57 de um jogo sensaborão, o então ponta-de-lança do Werder Bremen capitaliza uma bola cruzada de um canto na direita, por Basinas, e uma hesitação entre Costinha e o guarda-redes Ricardo. Cabeceamento, golo.  

«É o momento mais brilhante da minha carreira, sim», anui Charisteas ao zerozero, a partir da Alemanha, onde segue o Euro24 e faz comentários para o canal público helénico.

«Mesmo que o quisesse esquecer, não mo permitem», brinca o antigo avançado, agora com 44 anos e a deliciar-se com «o futebol visto de fora».

Duas décadas volvidas, Charisteas aceita o nosso convite para a entrevista. Afável, espirituoso, pega no livro de memórias e folheia-o livremente, como se vivesse só mais uma vez «o melhor verão da vida». Uma recensão livre de rigor e de estereótipos.

Se nos permitem o oxímoro, Charisteas é o nosso carrasco gentil. «Espero que já não estejam chateados comigo, porque gosto muito de visitar Portugal nas férias.»

Por nós, contas acertadas, caro Angelos.

zerozero – Há 20 anos, o Charisteas partiu milhões de corações portugueses. Sentiu-se o ‘carrasco de Portugal’ naquela final do Europeu?

Angelos Charisteas – Sei que foi muito difícil para os portugueses perder esse jogo. Disputar uma final no próprio país e não ganhar… claro que foi difícil e consigo imaginar o que terão sentido nesse dia e nos seguintes. Mas o futebol dá sempre novas oportunidades. 12 anos depois desse meu golo, Portugal celebrou o título europeu contra a seleção de França e em França. Só o futebol e o desporto são capazes destas emoções e destas ironias.

zz – Depois desse golo e dessa final, já teve oportunidade de voltar a Portugal?

AC – Sim, voltei para jogar contra o Benfica em 2008 e já fui de férias também. Ninguém me tratou mal (risos). Na Grécia é igual. Quando falamos do Cristiano Ronaldo, nunca falamos sobre ele de uma forma negativa.

zz – Mas ele nunca marcou um golo à Grécia numa final de um Europeu.

AC – É verdade (risos). Quero acreditar que se formos corretos, honestos e ganharmos de forma limpa, como a Grécia ganhou no Euro2004, ninguém nos pode acusar de nada. Na minha vida tentei sempre ser coerente e fazer bem as coisas. Nessa tarde fiz tudo para dar uma alegria a milhões de gregos. Conquistar o Campeonato da Europa em Portugal e contra Portugal na final… senti-me abençoado.

20 anos depois, cá estou na Alemanha em trabalho. Estive no Portugal-Turquia e percebi a energia maravilhosa, o quão importante é fazer parte deste torneio. Senti-me muito triste porque a Grécia não está cá. E Portugal já está entre os oito melhores. Talvez consiga mesmo ir até à final. Decidi o Euro2004 com um golo, nunca me vou esquecer, mas estou aqui agora e não tenho o meu país a competir. É triste.

zz – No Euro2004 fez golos a França, Espanha e Portugal. Foi um torneio maravilhoso para si.

AC – Tenho na cabeça os detalhes de cada um desses golos. Todos os dias da minha vida, mais de 50 pessoas me enviam mensagens sobre o Euro2004. É impossível libertar-me desses pensamentos. O primeiro golo, contra a Espanha, foi difícil. Recebi um passe muito longo, tive de controlar bem a bola e o Puyol estava mesmo em cima de mim. Tive de rematar o mais rápido possível e fiz golo ao Iker Casillas.

O segundo, frente à França, foi maravilhoso. Começou num movimento fantástico do Zagorakis, na direita. Fugiu, cruzou e eu fiz um cabeceamento perfeito ao Fabien Barthez. E o último, a Portugal, deu-nos a taça. Esses três golos seguiram-me ao longo de toda a carreira. Quantos jogadores têm percursos fabulosos e nunca têm a oportunidade de jogar e marcar pelos seus países? Tive muita sorte. Marquei golos fantásticos a equipas fantásticas.

zz – No golo a Portugal, pressentiu o «cheiro a sangue» na área?

AC – Senti que podia fazer estragos de cabeça, sim. Era o meu trabalho. O Costinha estava a marcar-me. Acho que o Ricardo ficou na dúvida se devia sair ou ficar na baliza e isso criou dúvidas também no Costinha. Houve ali insegurança. Fiz o meu movimento em direção à bola, o canto vinha muito tenso e forte, e o cabeceamento saiu-me bem. Neste tipo de jogos não há muitas oportunidades. Aproveitei bem aquele instante de dúvida.

zz – A final foi muito fechada taticamente. A Grécia esteve confortável e pouco permitiu. Concorda?

AC – Primeiro tenho de recordar uma coisa: a nossa seleção estava cheia de bons jogadores e jogadores que jogavam em clubes de topo nas melhores ligas da Europa. Tínhamos experiência suficiente para perceber que a pressão estava toda do lado português. Com Figo, Rui Costa, Pauleta, Ricardo Carvalho, ninguém esperava que Portugal perdesse. Sabíamos disso e jogámos com isso.

Se Portugal não marcasse até ao intervalo, o ambiente passaria a jogar a nosso favor. Defendemos bem, mas a nossa equipa não era uma equipa defensiva. Defendíamos bem, sim, mas com bola tínhamos qualidade. Empatámos contra a Espanha e ganhámos à França. Não se esqueçam disso. Portugal jogou sob grande pressão e nós já éramos heróis no nosso país. Isso permitiu-nos jogar com alguma serenidade a final.

zz – E a Grécia já tinha derrotado Portugal no jogo inaugural do Europeu.

AC – Ninguém é campeão da Europa por sorte. Simplesmente, não é possível. Pode haver um outro momento de sorte, mas em seis jogos? Ainda agora vi o Portugal-Eslovénia e o quão duro é marcar um golo. Alguém acredita que a Grécia passou por esses seis jogos e foi campeã da Europa só por sorte? Impossível. Temos de ter qualidade, jogadores, mentalidade e treinador de topo. E tudo tem de bater certo. A cem por cento.

zz - Depois do apito final, que ambiente encontraram na equipa portuguesa? 

AC - Não quero mentir. Foi demasiado forte, estivemos ainda uma boa meia-hora na relva da Luz. Estavam muitos gregos no estádio, não sei se se lembram. Do que me lembro?... Lembro-me de ver o miúdo Ronaldo a chorar, isso sim. E de receber um abraço do Figo. Tentámos respeitar ao máximo a dor dos portugueses. Mesmo no balneário, acho que não exagerámos. Do lado deles não se ouvia uma mosca. 

«Recebi um convite em 2006 para jogar no Benfica»

zz – O golo a Portugal foi o mais importante da sua carreira?

AC – Sim, sim, totalmente. Deu-nos o Europeu e entrou diretamente para a história do futebol grego. As pessoas lembram-se das finais, dos golos, dos vencedores. Ainda agora cheguei aqui à Alemanha e apanhei num ecrã gigante, numa fanzone, todos os meus golos no Euro2004.

zz – Na altura jogava no Werder Bremen. Foi o herói do torneio, mas continuou a jogar lá. Não recebeu nenhuma oferta milionária?

AC – Estava muito feliz em Bremen. Ganhámos o campeonato, a taça e tínhamos uma super-equipa. Fui cheio de confiança para o Europeu e estava preparado para desempenhar um papel importante, honestamente. Não mudei de clube porque no Werder Bremen tinha tudo o que precisava. Era feliz e tinha um bom contrato, para quê mudar?

zz – Esteve em dois Europeus, num Mundial, jogou a Liga dos Campeões e foi decisivo no único grande troféu do seu país. É o segundo jogador com mais golos pela Grécia, aliás. Considera-se um deus grego?

AC – Percebo a provocação, mas não (risos). O que eu sei, e posso prometer em público, é que nunca ninguém treinou melhor do que eu. Agora tenho 44 anos, posso olhar para trás e falar desapaixonadamente. Comecei num pequeno clube na Grécia [Aris], passei depois grande parte da carreira na Alemanha [Werder Bremen, Nurnberg, Bayer Leverkusen e Schalke 04] e na Holanda [Ajax e Feyenoord], joguei nas melhores provas do mundo.

Alcancei tudo o que queria. Vi jogadores mais talentosos do que eu e que não alcançaram metade do que consegui. Isso é bastante vulgar, demasiado até. A diferença é que eu tinha uma personalidade perfeita para estar na alta competição. Nunca fui o melhor futebolista das minhas equipas, mas adorava treinar. Quem treinava melhor? Eu. Todos os dias. Era viciado no trabalho. O primeiro a chegar e o último a sair.

zz – Nunca recebeu um convite para jogar em Portugal?

AC – Sim, recebi. Tive uma proposta do Benfica em 2006.

zz – Recusou-a?

AC – Falámos bastante, mas optei por recusar essa possibilidade. Eu estava a jogar no Ajax, há um ano e meio. Achei que seria estranho mudar novamente de país. Tinha-me mudado da Grécia para a Alemanha, da Alemanha para a Holanda e recusei mudar mais uma vez. Ir para um novo país não é só uma questão desportiva. É uma vida nova, costumes novos, pessoas diferentes, mentalidade distinta. Optei por continuar na Holanda e assinei pelo Feyenoord. Senti que tinha de continuar por lá.

«Pavlidis é completo e gosta de participar no jogo»

zz – O que se passa com a seleção da Grécia? Está há dez anos fora das fases finais das grandes provas.

AC – Pois… (pausa) Entre 2002 e 2014 tivemos a melhor geração do futebol grego. Jogámos três Europeus e dois Mundiais nessa fase. Depois de 2014, sentimos que a equipa caiu. Por várias razões e não é fácil explicar tudo. Ontem estava a ver o França-Bélgica e a pensar o quão difícil é a um país mais pequeno no futebol estar muito tempo no topo.

Temos de ser mais organizados e rigorosos. O que Portugal tem conquistado nos últimos 25 anos é fabuloso. Estar em todos os grandes torneios, sempre a mostrar fantásticos futebolistas e a lutar pelos títulos? Um país pequeno como Portugal? Fabuloso, fabuloso. Alguma coisa estão a fazer bem em Portugal (risos). Continuamos a ter bons jogadores e um ainda agora foi para o Benfica, mas está a faltar qualquer coisa.

zz – Conhece bem o Pavlidis?

AC – Sim, claro. É um avançado muito completo, forte, que gosta de participar no jogo. Não é só um marcador de golos. Já foi indiscutível na seleção, mas ultimamente o Ioannidis [Panathinaikos, desejado pelo Sporting] até tem sido a primeira opção.

zz – Tem algum favorito para ganhar o Euro24?

AC – Vi quase todos os jogos e tenho, claro. Joguei nove épocas na Alemanha, conheço muito bem a mentalidade deste país e é sempre um candidato à vitória final. Mesmo que não tenha uma seleção com o nível de outras do passado. Num mês tudo pode acontecer. Acredito que o campeão da Europa vai sair do Alemanha-Espanha dos quartos-de-final. Uma delas será a vencedora. Pelo que tenho visto, acredito nisso. São duas seleções em muito bom estado de forma.

zz – O que tem achado de Portugal?

AC – Vi o jogo contra a Turquia com atenção. Uma equipa que tem Bernardo Silva, Rafael Leão, Nuno Mendes, João Cancelo, Vitinha, Bruno Fernandes, enfim, tem sempre de ser candidata ao título. Essa é a espinha da equipa, juntamente com o guarda-redes Diogo Costa. E depois há o Cristiano Ronaldo, uma lenda do jogo. É a estrela, tem experiência, ainda pode fazer coisas boas.

E estou a esquecer-me do Pepe. Portugal tem tudo o que precisa para ser campeão da Europa, mas coloco-o atrás da Alemanha e da Espanha nesta altura. Ah, e Portugal tem um grande selecionador.

zz – Conhece bem o Roberto Martínez?

AC – Conheço-o pessoalmente, tem ideias fabulosas, respeita muito os jogadores. É um gentleman, um tipo fantástico. Espero que ele tenha muita sorte com Portugal. Gostei muito de falar para o vosso país e, por favor, desculpem o meu golo de há 20 anos. Estava só a fazer o meu trabalho.

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