«NO FC PORTO PERDíAMOS E NEM DORMíAMOS; NO SPORTING PERDIAM E IAM à DISCOTECA»

1984, ano louco na vida de António Sousa

Dois golos na final da Taça de Portugal.

Um golo na final da Taça das Taças.

Autor do primeiro golo de Portugal num Campeonato da Europa. 

Transferência-relâmpago e polémica do FC Porto para o Sporting. 

Não é coisa pouca. Sousa, apenas Sousa, é um dos melhores médios de sempre em Portugal. Campeão da Europa pelo FC Porto em 1987, vencedor da Supertaça Europeia e da Taça Intercontinental. Um luxo, um luxo. Mas não se fica por aqui. Pousadas as chuteiras, a carreira de treinador tem um momento mágico em 1999: o Beira-Mar ganha a Taça de Portugal com um golo de... Ricardo Sousa, filho de António. 

Melhor convidado que este para o Episódio 100 do DESTINO: SAUDADE? Digam-nos um! No segmento 'Domingo Desportivo', os convidados são Marco Sousa e Pedro Dias - fundadores, cuidadores e administradores do zerozero.

António Sousa, 67 anos, um grande senhor do futebol. Introvertido, cioso da sua intimidade, abre uma exceção e aceita o convite do zerozero. Nesta PARTE II Sousa fala da mudança das Antas para Alvalade, com bilhete de regresso ao mundo portista. Imperdível.

PARTE I: «No Euro84 fui ter com o selecionador: 'Senhor Fernando, não estou aqui para brincar'»

zerozero - 1984 foi ano da sua mudança das Antas para Alvalade. Porque é que decidiu sair do FC Porto logo depois do clube jogar uma final europeia? 

António Sousa - O contacto [do Sporting] surgiu antes do Europeu. Mas não foi aprofundado, porque ainda tinha contrato com o FC Porto na altura. Salvo erro por mais um ano. As coisas resolveram-se depois do Europeu, com conversas entre as partes. Só depois do Europeu é que se consumou a possibilidade de eu ir para Alvalade. 

zz - Conversas com o presidente João Rocha ou já havia algum empresário no meio? 

AS - Conversas com pessoas ligadas ao Sporting. Mais tarde, sim, na assinatura do contrato já estava o presidente João Rocha. 

zz - O Jaime Pacheco mudou-se antes ou depois do Sousa para o Sporting? 

AS - O Jaime já tinha chegado a acordo com o Sporting. Comigo foi uns dias depois. 

zz - E estava a par da situação do Jaime? 

AS - Perfeitamente. Sabia que o Jaime ia para o Sporting. 

zz - Foi importante saber que teria o apoio do Jaime em Lisboa?

AS - Sim, sem dúvida. De qualquer forma, conhecíamo-nos todos bem, convivíamos com os jogadores do Sporting na seleção. Jogar futebol era igual em qualquer lado, apesar da mística diferente, da forma de estar diferente, mas adaptámo-nos bem à realidade do Sporting. Para mim foram dois anos espetaculares. 

zz - Ainda treinaram com o Paulo Futre no Sporting? 

AS - Não, foi precisamente na altura em que o Futre se mudou para o FC Porto. Já não nos cruzámos em Lisboa. 

zz - Como foram os primeiros tempos em Lisboa, conhecia a cidade? 

AS - Mais ou menos. Foram muitos jogos, muitos treinos em Lisboa, tive alguma dificuldade em arranjar casa. Fiquei um mês e meio num hotel e depois arranjei uma casa junto a Alvalade. Encostadinha ao campo. E por lá fiquei nessas duas épocas. 

zz - Muitos sportinguistas ainda falam do seu espetacular golo ao Athletic Bilbao. 

AS - Só os que estavam no estádio, porque o jogo não deu na televisão (risos). Foi um momento único, um livre na zona do meio-campo. O Pacheco marcou o livre muito rapidamente, eu dou dois passos à frente, recebo a bola, apareceram-me dois jogadores deles, ameacei e driblei-os, passando pelo meio deles. Cheguei a cinco/seis metros da área e arranquei um pontapé forte, ao lado esquerdo do guarda-redes. Meti a bola no 'sete', como costumamos dizer. Deu-nos a tranquilidade dentro da eliminatória (3-0). 

zz - O guarda-redes era o Andoni Zubizarreta, novo diretor desportivo do FC Porto. Como eram o Vítor Damas e o Manuel Fernandes como colegas de balneário? 

AS - Espetaculares. O Damas queria uma festa e uma borga, sempre bem disposto. E o Manel era um homem dedicado aos interesses da coletividade, um amigo do peito e do coração. Sempre disponível para colaborar e ajudar no necessário. 

zz - O John Toschack era o treinador. Mudou muito a mentalidade do futebol português e leonino? 

AS - Julgo que não. Pouco ou nada alterou. Era boa gente. Quis implementar uma mentalidade diferente. Se calhar até merecia mais arrogância competitiva da parte da equipa, para se mudar um bocado a imagem que havia. O Sporting, em Lisboa, é diferente do FC Porto. As mentalidades são diferentes. No FC Porto íamos para o treino e treinávamos a sério. Se perdíamos ou empatávamos um jogo, íamos para casa e nem dormíamos. Na segunda-feira nem queríamos sair de casa. Na terça começava a semana e só queríamos que o jogo chegasse depressa. Em Alvalade não era assim. Vínhamos ao Norte, se perdíamos ou empatávamos não se notava a dor de não ter o prazer da vitória. Os jogadores perdiam, chegavam a Lisboa e ainda iam à discoteca. Mentalidades diferentes, uma forma de estar completamente diferente. 

zz - Foi isso que o levou a querer voltar ao FC Porto em 1986? Não se identificar com essa mentalidade competitiva do balneário de Alvalade. 

AS - Se calhar teve muito a ver com isso. Sem dúvida nenhuma. As coisas até poderiam vir a melhorar. O treinador Manuel José mudou ligeiramente essa forma de os jogadores estarem dentro do treino. Mas o gosto, o prazer que tinha sentido nos cinco anos do FC Porto... foram enormes. O sentimento, a paixão. Dava gosto estar nas Antas, conviver com toda a gente. Sentíamo-nos bem no clube, não queríamos ir para casa. Queríamos era trabalhar e treinar. Por isso encarei de forma muito séria o meu regresso ao FC Porto, apesar de uma perda financeira muito grande. 

zz - Essa operação de regresso já foi comandada pelo senhor Pinto da Costa? 

AS - Quase no início da época 85/86 já andava lá uma pessoa do FC Porto a rondar. 'Como é? Tens de voltar'. Foi quase um ano inteiro. Mas eu não era pessoa para desorganizar mentalmente, era muito focado no que importava.  

«O meu contrato no FC Porto acabou e o clube não o renovou»

zz - Como é que foi recebido no regresso ao FC Porto? 

AS - Bem, sinceramente. Só consegui começar a treinar depois do dia 1 de agosto, que era quando acabava o contrato na altura, e perdi 15 dias de trabalho. As regras impunham isso. A receção foi excelente, com o convívio normal. Continuámos a fazer o que mais gostávamos e que era jogar futebol. 

zz - Que Artur Jorge encontrou nessa reentrada no FC Porto? Um durão?

AS - Não, o Artur não era assim. Calmo, tranquilo, falava o suficiente para sermos melhores. Não precisei de nenhuma adaptação, mas comecei mais tarde e tive mais dificuldades em ser titular. Alternei o banco com o onze inicial. 

zz - Começa a ser titular e a fazer os 90 minutos mais perto da final de Viena. O Artur Jorge já lhe tinha dito que ia ser titular contra o Bayern? 

AS - Não sabia. Só soube um dia antes, ou talvez no dia do jogo. O Artur não passava a informação com antecedência. Nós só soubemos os convocados para Viena no dia do embarque. Era uma azáfama doida (risos). Não sabíamos se a família ia ou não. Mas foi. Foi uma época difícil para mim, o único ano em que não me consegui afirmar na titularidade. Tive a mesma dificuldade na primeira época com o senhor Pedroto, quando vinha do Beira Mar, mas depois joguei sempre. Agarrei a titularidade num jogo no Estádio do Bessa. 

zz - Em 87/88 o FC Porto é campeão mundial em Tóquio e ganha a Supertaça ao Ajax. O que se recorda do frio e da neve do Japão e do frio, ainda que diferente, de Amesterdão? 

AS - Todas as vitórias foram saborosas. Agarrávamos isso com enorme prazer, não queríamos deixar fugir coisas belas. Não queríamos desperdiçar esses momentos. O Ajax tinha uma equipa muito boa, das melhores equipas a jogar futebol, mas montámos uma teia e num dos nossos muitos contra-ataques conseguimos marcar através do Rui Barros. A rapidez dele e a qualidade fizeram a diferença. Ganhámos lá e em casa definimos tudo, com as nossas gentes. Tínhamos de ser iguais, fortes mentalmente, tínhamos de ganhar e o pensamento estava muito enraizado. Tive a felicidade de fazer o único golo e agarrámos um troféu de grande importância. 

zz - O António teve a amabilidade de trazer essas medalhas das conquistas europeias. De ouro. E a medalha de prata de 1984. Quando pega nestas coisas lindas, é uma pessoa nostálgica, valoriza ou nem por isso? 

AS - Sou equilibrado. Valorizo, gosto de reviver isso. É muito bonito e temos de sentir-nos felizes e orgulhosos. É uma alegria ter estes pequenos troféus em minha posse. 

zz - Que função teve em campo na final de Viena? Apesar de ser o '9' não foi ponta-de-lança. 

AS - Não, não. Como disse atrás, fui o '9' porque os outros números já estavam ocupados. Joguei na minha pessoa normal. Médio esquerdo com liberdade ofensiva. O Futre e o Madjer na frente, cada um do seu lado. O Futre muitas vezes a partir da direita. Foi uma final de grande orgulho. Não éramos favoritos, nunca fomos. Eram os alemães. Chegámos lá por mérito próprio. O estádio estava cheio de alemães, mas o pequeno grupo de portugueses superou a multidão germânica. O Bayern tinha um poder enorme, mas nós tínhamos grande qualidade técnica. O resto foi entreajuda, não dar grandes espaços, evitar lances de bola parada. Conseguimos roubar-lhes a bola, pusemo-los a correr atrás dela e criámos grande desgaste no adversário. Demos a volta ao marcador e gerimos muito bem até ao apito final. Foi um momento histórico e único. 

zz - Avancemos no tempo. Pegámos nesta caderneta e vimos o Sousa no Gil Vicente ao lado de Mangonga e Drulovic. 

AS - Fiz lá a época 93/94, a minha última na I Divisão. Aconselhei-o a aceitar o FC Porto. Ele estava com dúvidas. 'Pá, tens de ir para este grande clube. Tens qualidade, vais-te impor'. 

zz - Ele era mesmo bom no Gil? 

AS - Muito, muito bom. 

zz - E no Beira Mar quem apanhou? 

AS - Eu fiz oito épocas no Beira Mar. Quatro antes do FC Porto e quatro depois do FC Porto. Joguei com o Penteado, por exemplo, que tinha sido meu colega nas Antas. Eu ainda sentia prazer e gosto pela profissão, queria continuar a jogar. Saí em 1979 do Beira Mar e voltei em 1989. Aveiro é a minha casa também. Sempre respeitei o clube, tive 17 anos de vida na cidade, entre jogador e treinador. O Beira Mar merece muito mais do que tem, é um clube de I Liga. Acho que as pessoas me adoram. Foram anos maravilhosos e depois aconteceu a conquista da Taça de Portugal. Dei um troféu enorme a um clube pequeno e recordarei esse momento enquanto for vivo. 

zz - Saiu do FC Porto com 32 anos, em 1989. Por vontade própria ou opção do clube? 

AS - Opção do clube. O FC Porto dispensou muita gente nesse verão de transição. Gomes, Lima Pereira, Frasco [mais Eduardo Luís, Jaime Pacheco, Quim], a grande maioria que tinha feito os anos anteriores. 

zz - O processo foi duro? 

AS - O meu contrato acabou e o clube entendeu não haver motivo para renová-lo. Tive possibilidade de ir para outro lado, mas gostava muito de Aveiro e do Beira Mar. Queria voltar lá e escolhi o Beira.

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